Leônidas Oliveira*
O modernismo brasileiro, tantas vezes narrado a partir da Semana de
22, tem no interior de Minas um eixo inesperado e decisivo. Cataguases
— às vésperas do centenário da sua legendária Revista Verde
(1927–1929) — não foi apenas um ponto no mapa: foi e é um polo de
invenção cultural onde literatura, arquitetura, cinema, indústria e
paisagem convergiram para moldar o Brasil moderno. Moderna, porque
incorpora e reinventa linguagens; eterna, porque soube ancorá-las na
vida cotidiana e na paisagem da Zona da Mata.
Do ouro à máquina
Para compreender essa história, é preciso recuar ao ciclo do ouro. A
opulência barroca de Minas, hoje patrimônio mundial, foi financiada
pelo ouro extraído não apenas de Ouro Preto e Mariana, mas também das
lavras e rios da Zona da Mata, do Vale do Rio das Velhas, do Campo das
Vertentes, do Quadrilátero Ferrífero e de tantas outras frentes
mineradoras espalhadas pelo território mineiro setecentista.
Grande parte dessa riqueza escoou para a Inglaterra, sustentando a
Revolução Industrial. O ouro que moldou retábulos e igrejas também
moveu máquinas em Birmingham e Manchester. Walter Gropius, ao fundar a
Bauhaus em 1919, captaria a consequência desse processo: “A nova
arquitetura é a expressão lógica da vida moderna.” Minas, sem o saber,
ajudava a financiar a racionalidade industrial que, dois séculos
depois, inspiraria seu próprio modernismo.
A indústria como precursora da forma
Muito antes de a arquitetura moderna enunciar “a forma segue a
função”, a indústria já praticava esse princípio. Simplificou linhas,
otimizou processos, transformou a técnica em estética. Em Cataguases,
essa simbiose foi plena: fábricas têxteis e gráficas não apenas
produziam bens, mas um modo de pensar — funcional, econômico,
esteticamente consciente. Essa mentalidade forneceu à arquitetura
moderna o vocabulário material e técnico com que se expressaria.
A Revista Verde e sua rede nacional
Nesse contexto nasceu a Revista Verde, obra de Rosário Fusco, Ascânio
Lopes, Francisco Inácio Peixoto, Enrique de Resende e outros. O
periódico tornou Cataguases centro de um diálogo modernista que
incluía Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Raul Bopp, Manuel
Bandeira, Aníbal Machado e o jovem Carlos Drummond de Andrade. Flora
Süssekind lembra que “a revista literária é sempre um ato fundador” —
e a Verde fundou um território de vanguarda no interior,
articulando-se às redes culturais do país e às correntes
internacionais.
Mecenato antes da institucionalização
O modernismo cataguasense não sobreviveu apenas de ideias. Foi
sustentado por empresários que, muito antes de qualquer política
pública de fomento cultural, financiaram escolas, tipografias,
cine-teatros, bibliotecas, casas modernistas e hotéis. Criaram, na
prática, um mecenato local de alto alcance, compreendendo que
desenvolvimento econômico e vida cultural se reforçam mutuamente.
Modernismo como projeto comunitário
O que distingue Cataguases é que seu modernismo não foi apenas um
punhado de obras assinadas: foi um projeto comunitário. Residências,
escolas, equipamentos culturais e espaços públicos foram concebidos
dentro de uma mesma lógica estética e funcional. Décadas antes de
Brasília, a cidade já experimentava, em escala urbana e de forma
articulada, um conjunto coerente de obras modernistas — a maior
experiência coletiva do tipo no interior do país.
Arquitetura e paisagem
Cataguases traduziu, em obras de Oscar Niemeyer, Francisco Bolonha e
Henrique Mindlin, a gramática racionalista europeia — filtrada pela
curva e pela luz brasileiras. Como o barroco mineiro, o modernismo
local não se rendeu à rigidez: integrou arte, técnica e paisagem.
Kenneth Frampton chamaria isso de “regionalismo crítico”: absorver
linguagens universais sem perder o enraizamento cultural.
Artes plásticas e paisagismo integrados
O modernismo em Cataguases foi concebido como obra total, no sentido
bauhausiano: arquitetura, artes plásticas e paisagem planejada formam
um só conjunto. Murais de Cândido Portinari, trabalhos de Djanira da
Motta e Silva e Hansen Bahia, azulejaria de Paulo Werneck e esculturas
de Bruno Giorgi e Amílcar de Castro integram fachadas e praças.
No paisagismo, Roberto Burle Marx deixou jardins e áreas verdes que
prolongam o gesto arquitetônico, com espécies nativas e curvas
orgânicas. Caminhar por Cataguases é percorrer um museu a céu aberto,
onde arquitetura, arte e natureza formam uma mesma narrativa visual.
Cinema e audiovisual
No cinema, Humberto Mauro fez da luz da Zona da Mata sua
matéria-prima. Seus filmes fundacionais do cinema brasileiro nasceram
aqui, num diálogo precoce entre tecnologia e sensibilidade local.
Hoje, o Polo Audiovisual da Zona da Mata dá continuidade a essa
vocação, integrando produção, formação, exibição e turismo criativo.
Região: diferenças complementares
Cataguases dialoga com cidades vizinhas como Leopoldina, de tradição
imperial, cujas elites e arquitetura oitocentista guardam a memória de
outro tempo moderno, marcado pela ferrovia e pela cultura letrada. Em
conjunto com Além Paraíba, Muriaé e Ubá, forma-se um mosaico cultural
onde cada núcleo contribui com vocações distintas: Cataguases como
vanguarda modernista e audiovisual, Leopoldina como guardiã da herança
imperial e literária, Ubá como polo moveleiro criativo. Não há
hierarquia; há diversidade de tempos e linguagens.
Turismo como vivência da modernidade
Em Cataguases, o turismo é imersivo. Hospedar-se em um hotel
modernista, tomar café sob brises-soleil dos anos 1940, assistir a uma
sessão no Cine-Teatro Edgard ou caminhar por ruas ladeadas por casas
de linhas puras é viver a modernidade como experiência cotidiana. O
visitante não apenas vê — habita temporariamente o projeto cultural
que a cidade construiu ao longo de um século.
Cataguases: Modernismo Vivo, Patrimônio Eterno
Em “Meditação sobre o Tietê”, Mário de Andrade dizia que a modernidade
no Brasil precisava “falar alto e com sotaque”. Cataguases fala com
sotaque mineiro, mas com voz que ressoa em todo o país — e, em seus
gestos mais ousados, em diálogo com o mundo. Aqui, o ouro que um dia
vestiu altares e acendeu fornos na Revolução Industrial retorna como
forma pura, curva generosa, mural colorido, jardim de Burle Marx,
filme de Humberto Mauro.
Pedro Nava lembrou que “a cidade é o espelho de seus homens, e estes
se miram nela para saber quem são”. No espelho de Cataguases, a Zona
da Mata vê-se como território criativo, capaz de unir indústria e
arte, trabalho e poesia, tradição e vanguarda. Décadas antes de
Brasília, a cidade realizou a mais extensa e coesa experiência
urbanística modernista do interior brasileiro — não como imposição de
um plano, mas como projeto comunitário que integrou casas, escolas,
praças, cinemas, fábricas, jardins e obras de arte num mesmo horizonte
de futuro.
Ao celebrar o centenário da Revista Verde, Cataguases e sua região
afirmam-se como paisagem de vanguarda permanente. Modernidade aqui não
foi só uma época: é uma maneira de viver, preservando a herança e
projetando o inédito. A autoestima da Zona da Mata encontra, nesta
história, a confirmação de que pode ser centro, mesmo quando
geograficamente interior; universal, sem deixar de ser mineira;
moderna — e eterna — ao mesmo tempo.
Estive em Cataguases nesta semana, durante o Festival Modernista, e
caminhar por suas ruas foi como folhear um álbum vivo da história da
arte brasileira. As fachadas brancas sob o sol, os painéis de
Portinari, os jardins de Burle Marx e a luz que Humberto Mauro soube
eternizar no cinema — tudo se encontra em diálogo, sem pressa, como se
a própria cidade soubesse que modernidade não é apenas velocidade, mas
também permanência.
*Leônidas Oliveira é Arquiteto e Urbanista. Especialista em História
da Arte. Mestre em Restauração do Patrimônio Arquitetônico e Urbano na
Universidade de Alcalá de Henares, Espanha e RAE, Roma. É PhD em
Teoria da Arquitetura pela Universidade de Valladolid, Espanha.
Atualmente Leônidas ocupa o cargo de Secretário de Estado de Cultura e
Turismo de Minas Gerais. É professor da PUCMinas.

